Quando, em 2007, aceitei o convite de Márcio Meirelles para dirigir o Museu de Arte Moderna da Bahia, senti-me atraída, entre tantas possibilidades, pelo fato de poder conhecer e trabalhar com os artistas locais, e principalmente com os jovens artistas em início de carreira. Além disso, tinha em mente a intenção de promover o intercâmbio cultural e trazer ao público baiano a produção contemporânea do Brasil e do mundo, o que vem ocorrendo, com a parceria da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, desde o início da minha gestão.
Contemplado com o Prêmio de Residência Artística no exterior, na última edição do Salão da Bahia, promovido anualmente pelo MAM-Ba, Vinícius S.A. foi um dos artistas locais que mais me impressionaram, pela delicadeza e contundência de sua poética, construída a partir de heranças familiares e coletivas. Híbrido de artista e inventor, que promove um profícuo diálogo entre diferentes técnicas e áreas de pensamento, Vinícius constrói máquinas lúdicas e parafernálias poéticas poderosas, extraindo do lixo e caos da sociedade contemporânea as esperanças de um homem que ainda lembra, e segue, confiante.
A expressão “sofrimento da seca” parecia quase um pleonasmo. Inevitavelmente, à impotência diante dessa realidade perpétua (e perpetuada), se seguia a tristeza ante a imagem do sertanejo esquecido num cenário no qual, estrutural e sistematicamente, não havia outra opção além da sobrevivência. Nesse contexto, qualquer poesia parecia leviandade; entrever beleza seria uma heresia; falar de arte implicaria uma afronta. Então, as “Lágrimas de São Pedro” emergem como possibilidade miraculosa de reversão desse conceito quase tautológico que tínhamos do Sertão.
Entrar na instalação é como entrar no espelho de Alice, que em sua surrealidade nos faz mergulhar na possibilidade de subverter o inimaginável. É a água da chuva que cai do céu para molhar o chão do qual, talvez, possa nascer o feijão. Cada gota é um tesouro preservado na fragilidade de finos bulbos descartados como lixo no destino derradeiro do consumo contemporâneo. Aquilo que é inútil para uns vira receptáculo do essencial para outros: de berços de luz elétrica a pequenos depósitos de água, energia fundamental para a terra germinar. O sonoro lamento que comove o início do percurso se transforma em êxtase inefável diante da nova luz vital; a imagem hostil da terra rachada, em sensação aconchegante da água retida no ar.
Mas, se, numa primeira fruição da instalação de Vinicius S/A, somos levados, inexoravelmente, a enfrentar um tema que circunscreveria a obra em uma abrangência regional, numa apreciação mais demorada, percebemos que “Lágrimas de São Pedro” é, antes de tudo, um discurso sobre o tempo como valor universal. Porque a temporalidade humana é, talvez, a principal fonte de nossa infelicidade. Por um lado, almejamos coisas que não temos, desejamos ser algo que não somos, ou sonhamos alcançar metas inatingíveis, imersos em neurótica futuridade. De outro lado, sentimos nostalgia daquilo que tivemos, idealizamos momentos passados, ou buscamos escape existencial refugiados em pseudoglórias pretéritas. O presente é um lapso imperfeito entre eternos ontens e esperados amanhãs. Para o urbanóide rodeado de wi-fires, deliveries e high-definitions, o hoje, o agora, o instante, quase não tem valor, exceto pelo que foi ou pelo que projeta ser. A essência de “Lágrimas de São Pedro” é, precisamente, expor a relevância do presente que ultrapassa a acepção meramente temporal e adquire um sentido de dádiva: o presente é um presente, uma graça divina, uma recompensa efêmera ao eterno sofrimento da existência. As lâmpadas de vidro constituem uma metáfora da abissal diferença entre quem tem tudo e quem tem apenas o agora. E o choro de São Pedro é a única saída para o fim do choro dos sertanejos, para quem o ontem não é lembrança e o amanhã não é promessa de algo mudar. Temos o privilégio de entrar na chuva, mas não podemos ainda sentir o molhar. Estamos situados em uma fresta de tempo suspenso onde o presente é um instante de eternidade.
“Lágrimas de São Pedro”, de Vinicius S. A., é um manifesto poético-visual contemporâneo do direito à vida, da fé e da esperança do brasileiro e, em particular, do nordestino. Do direito à vida, pois ela advém e é sustentada pela água. Da fé, pois a crença em uma vida melhor alimenta e irriga o espírito. Da esperança, por ser ela cristalina como a água que decompõe a luz solar em arco-íris, esperança como filtro da pureza e da beleza da existência humana. De forte impacto visual, esta instalação é também de grande alcance simbólico por sintetizar e interligar as forças da natureza e do imaginário humano.
A instalação de Vinicius S.A, intitulada “Lágrimas de São Pedro”, que a Caixa Cultural Salvador exibe surpreende pela conjunção de estética e conceituação, binômio um tanto raro na arte contemporânea. Deriva de um pequeno ensaio ganhador de menção honrosa no Salão Regional de Feira de Santana em 2005.
A primeira vista as lâmpadas transparentes com água no bojo, penduradas por fios de nylon, em vários níveis, a curto espaço umas das outras, sob o efeito da luz artificial gradativa, nos causa uma sensação estética intensa.
É belo e fascinante o efeito, sugere pingentes de cristal e até certo ponto se aproxima de composições decorativas, sem qualquer teor pejorativo no uso deste termo. Quando relacionamos o título à instalação, tudo ganha uma outra dimensão, pois aquele conjunto de lâmpadas que nos atraia pela translucidez, passa a significar a água tão querida, esperada e rogada pelos sertanejos do nordeste brasileiro e que demora de vir, ou quando vem não é suficiente para dar de beber e prover o alimento das gentes e dos animais.
O flagelo da seca e da fome passa a interferir na leitura e fruição da manifestação artística sem que as imagens comuns e literais apareçam, e, repentinamente aquilo que nos embevecia pela luz cintilante, nos remete a uma problemática social tão conhecida e divulgada, e jamais enfrentada pelos poderes públicos.
Sutil e delicada forma de tratar artisticamente o problema, evitando recorrer as cansadas e explícitas imagens que estamos acostumados a ver e lançando mão de elementos aparentemente antagônicos, que encantam, penalizam e revoltam.
Nessa edição da Caixa Cultural, o artista nos convida a penetrar nesse espaço onírico e experimentar a visão de dentro, como em uma mina de cristal; a perceber as nuances do colorido que a refração da luz provoca nos pingentes. Reserva-nos, em um ambiente distinto, imagens projetadas por elementares projetores, semelhantes aqueles com os quais brincávamos na infância (uma caixa de sapato, com uma lâmpada transparente cheia de água).
A arte baiana é repleta de poéticas que abordam a problemática da seca no sertão, na fotografia o tema é recorrente, mas foi na arte das décadas de 1960 e 1970, que artistas como Juraci Dórea, Juarez Paraíso e principalmente o ETSEDRON exploraram com muita competência o potencial expressivo de materiais próprios da natureza e da cultura sertaneja: Juraci deu um sentido estético ao coro curtido (sola) e varas; Juarez re-significou a cabaça, unindo o litoral ao sertão, a cabaça ao búzio para falar de morte e vida. O ETSEDRON desafiou a ditadura para apresentar aos brasileiros e ao mundo a vida humana que o descaso político e econômico forjaram, e o fez com irreverência, pretendendo denúncia, vivência, envolvimento, choque e também apresentar a riqueza estética da pobreza.
Vinícius acrescenta a essa fortuna poética, outra proposta, baseada na lâmpada esvaziada da sua função utilitária, minimamente transformada, tornada metáfora, recheada de conceito e primordial para o intercurso que enriquece os discursos. Dessa habilidade o sertão está repleto, onde uma lâmpada, que não serve para iluminar, por não haver luz elétrica, serve como recipiente para o querosene que alimenta a chama.
Por fim Vinicius fala uma linguagem universal, pois a falta de água potável já é um problema no mundo e se agravará mais ainda com a crescente poluição, desmatamento e exaustão dos mananciais aqüíferos. Flagelos que garantirão longevidade ao impacto que a criação de Vinicius pretende e consegue causar no fruidor, e que pensamos ser o principal desígnio da arte.
Lágrimas de São Pedro, além de se consciência de reaproveitar o que é descartado pela maioria, dando outro sentido ao que foi produzido industrialmente, revela um artista preocupado com o que está à sua volta, afirmando sua cultura e poetizando as aflições do seu povo, dizendo em outras “imagens/palavras” de onde vem e para que veio.
Vinícius é independente, um artista que gosta da prática: do exercício intuitivo da artezania, da montagem minunciosa, do resultado final. Na cabeça de Vinícius deve chover inúmeras idéias, como lâmpadas que iluminam seu próprio caminho.
Gostas de Chuva
Já pelo título dá para relacionar a exposição “Lágrimas de São Pedro – Acalento ao Sertão Nordestino”, do artista visual baiano Vinícius S. A., 24 anos, em cartaz no espaço Caixa Cultural Salvador, com a chuva, a seca e o sertão. Mas nada é tão óbvio quanto aparentemente pode sugerir. Na entrada da instalação a primeira visão é de uma imagem estática de uma mulher negra de costas com uma lata d’água na cabeça. A imagem é projetada por uma caixinha de madeira rústica, sem pretensão de requinte, feita pelo próprio artista. Na seqüência, há uma projeção onde imagens alternadas que demonstram o sofrimento da terra com a falta de chuva contrastando com a vitalidade dela úmida. Isso tudo, desde o início, sob o som de um canto, tipo ladainha, que clama: “nem de fome nem de sede, matar seus filhos não”. Até então nada de surpreendente ou extraordinário, apenas uma introdução do melhor que está por vir: uma montagem que encanta o olhar e emociona facilmente até o espectador mais desatento. O impacto estético é sentido quando se cruza com quatro mil lâmpadas cuidadosamente penduradas, com uma variação de altura que aparenta ser milimetricamente estudada. As lâmpadas possuem a mesma medida de água e junto a uma luz certeira produzem um efeito devastador. A sensação que se tem é de gotas de chuva vistas com uma lente de aumento. Fora o aspecto emotivador dessa instalação, “Lágrimas de São Pedro” possui uma perfeita junção de poética e técnica da transformação de um objeto trivial num elemento plástico e comovente. Um bom início para Vinícius S.A em um novo contexto da arte contemporânea baiana que tem sido movimentada com mais força com a revitalização de espaços expositivos na capital e no interior do Estado. A idéia da instalação de ”Lágrimas de São Pedro“ surgiu de experiências autobiográficas de Vinícius. Na infância, o artista passava férias na cidade de Ubiraitá, no interior da Bahia. Ele transformou suas memórias em uma montagem que possibilita a cada espectador sentir a beleza da chuva quando ela é muito esperada.
CAIXA CULTURAL, SÃO PAULO-SP
ECOMUSEU DE ITAIPU, FOZ DO IGUAÇU-PR
GALERIA ACBEU, SALVADOR-BA
Exposição do acervo – Paulo Darzé Galeria
Pertencentes – Museu de Arte Moderna da Bahia, Salvador-BA
Arte de Passagem – Galeria Casa de Castro Alves, Salvador-BA
Aproximações Contemporâneas – Roberto Alban Galeria de Arte, Salvador-BA
Paraconsistente – Galeria ICBA, Salvador-BA
Escultura Nova – Galeria ACBEU, Salvador-BA
+B Inspiração Brasil – Arena Bureaus
Atelier Livre do Aluno – Galeria ACBEU, Salvador-BA
EBA 130 Anos / Ala Contemporânea – ICBA, Salvador-BA
Afetos Roubados no Tempo – Galeria Capibaribe, Recife-PE